Como ajudámos a CAIS a avaliar o impacto social das vendas da revista

Como ajudámos a CAIS a avaliar o impacto social das vendas da revista

João Brandão – Tech Lead Projeto CAIS

Guilherme Cardoso – Maker Projeto CAIS

Contexto

Uma das vantagens das técnicas utilizadas em ciência de dados é a possibilidade de serem usadas em múltiplos domínios que fabriquem dados. Grande parte das vezes estas técnicas são utilizadas no mundo empresarial com o objetivo de maximizar o lucro de empresas, seja através da melhoria do produto, seja através da definição de novas estratégias de negócio, entre outros. Mas o que acontece se as mesmas técnicas forem aplicadas a áreas sociais?

A ideia de utilizar o nosso conhecimento sobre técnicas da área de ciência de dados para aperfeiçoar não uma empresa, mas sim associações sociais, com o objetivo de melhorar a nossa sociedade, foi uma ideia que nos atraiu como voluntários. Vimos esta possibilidade como uma forma de contribuir para algo que nos move a todos.

A Data Science for Social Good Portugal (DSSG PT) tornou esta possibilidade uma realidade quando acabou por nos juntar com a CAIS, uma associação de solidariedade social que entre os vários projetos que tem vindo a desenvolver, criou a revista CAIS, uma revista vendida por pessoas em situações vulneráveis e que necessitam de ajuda financeira para poderem subsistir.

O projeto

A proposta inicial para este projeto foi a utilização dos dados das vendas da revista ao longo dos últimos anos e também o uso de alguns dados relativos aos vendedores para serem analisados de forma a que pudéssemos confirmar e/ou refutar algumas das percepções comuns sobre o perfil dos vendedores da Revista CAIS, através da criação de conteúdo para ser publicado numa campanha de marketing.

Acreditamos que todo o processo que levou à realização deste objetivo foi uma experiência de descoberta e partilha em dois sentidos. Para nós voluntários, enquanto cientistas de dados, foi uma experiência que nos permitiu perceber com mais detalhe o modus operandi de uma organização social e experienciar em primeira mão o impacto positivo que cria na vida das pessoas que beneficiam diretamente da sua ação e na sociedade em geral. Foi também uma experiência que permitiu a partilha do nosso conhecimento técnico com os membros da própria CAIS, que pacientemente enfrentaram o escrutínio de todas as nossas perguntas sobre os seus processos internos e sobre os dados fornecidos.

Foi precisamente este entendimento conseguido através da partilha de informação e conhecimento entre dois grupos de pessoas de áreas diferentes e que falam diferentes linguagens, mas que rapidamente passaram a compreender-se, o que tornou o projeto exequível.

Foi um desafio para nós perceber as limitações da CAIS que levaram a que os dados reunidos nem sempre fossem estruturados ou completos. A verdade é que em organizações sociais há sempre um sentimento de urgência no trabalho que se faz, por vezes com poucos recursos, pelo que tarefas como a recolha de dados facilmente caem para segundo plano. E por isso sentimos a necessidade de partilhar com a CAIS a importância da recolha de informação de forma consistente, dando exemplos de dados que podem ser recolhidos e apresentando, exemplos de análises que poderiam ser feitas com esses dados. Semana após semana, umas vezes mais motivados e outras menos, e sempre tendo por base a partilha de experiências e conhecimento, fomo-nos entendendo cada vez melhor. Na reta final do projeto já era mais clara para os dois lados a visão do outro: para a CAIS, o porquê da importância de se analisarem os dados célula a célula, e para nós, o sentido dos registos existentes, que, no início, nos pareceram aleatórios.

Os resultados 

O resultado do projeto foi divulgado numa campanha para celebrar o 26º aniversário da Revista. Tentámos, com os dados obtidos, expressar a realidade dos vendedores da Revista nos últimos anos e a dimensão do impacto que a sua venda teve na vida de quem beneficia desta ajuda. Quando uma Revista CAIS é vendida, existe toda uma história por detrás da sua venda que é muito maior do que simplesmente uma transação: existe toda a fascinante história do vendedor e do seu núcleo mais próximo, a história da equipa CAIS que acompanha o vendedor, a história da equipa editorial e a história do comprador.

Criámos um documento que pudesse servir de base à equipa de comunicação e design da CAIS com um conjunto de perguntas e respostas que resultaram da leitura, interpretação e análise dos dados a que tivemos acesso, de forma a servir de base à reflexão sobre o perfil dos vendedores e o impacto da venda da Revista na sua vida. Estas perguntas e respostas surgiram também como forma de dar resposta a alguns tópicos que achamos importantes mencionar, nomeadamente:

i) Impacto

Quão importante é para o vendedor a concretização de uma venda? As vendas ao fim do mês fazem diferença? 

Para responder a esta questão usamos métricas como o custo de vida e os rendimentos obtidos com e sem a venda da Revista. Assim conseguimos ter uma perceção mais realista de quão importante é cada venda. Também quisemos perceber em que é que os vendedores usam o rendimento que provém diretamente das vendas, e percebemos que 70% dos rendimentos obtidos são usados na alimentação.

ii) Caracterização

Quem são as pessoas mais ajudadas? Que escolaridade têm? Têm família? Quais são as suas  condições de vida? 

Percebemos, por exemplo, que a grande maioria dos vendedores não são sem-abrigo, ao contrário da nossa ideia inicial. Na verdade, menos de 1% dos vendedores registados nos dados a que tivemos acesso se encontrava nesta categoria. E este é um ponto muito importante. Existe um sem número de estereótipos que estão errados e que têm um impacto muito negativo na percepção que temos dos vendedores, o que torna muito mais difícil a sua aceitação pela sociedade.

iii) Transparência

Quantos vendedores existem? Quantas vendas fazem? São vendas regulares? Em que zonas actuam? Quanto tempo demora um vendedor a abandonar a venda da revista? Que rendimento gera? Onde é gasto?

Pensamos ser importante para os compradores da revista, não só perceberem quem são as pessoas que estão a ajudar, mas também perceberem como é que as estão a ajudar. Este conhecimento é essencial para criar uma ligação de confiança entre o comprador e o vendedor, podendo assim potenciar o aumento no número de vendas.

iv) Estereótipos

Todas as questões foram pensadas de forma a desmistificar o mais possível ideias pré-concebidas que nós tínhamos ou que foram identificadas pela equipa da CAIS.

Como mencionámos antes, este é um ponto essencial e a desmistificação de estereótipos foi um dos nossos maiores objetivos. Para além de percebermos que a grande maioria dos vendedores dormem em alojamentos, mesmo que seja um quarto alugado, numa instituição, ou num centro de acolhimento, percebemos também que os vendedores são na sua maioria pessoas mais velhas, sendo que 85% dos vendedores registados nos dados a que tivemos acesso têm uma idade acima da metade da esperança média de vida em Portugal.

v) Comunidade

Para cada questão foi feita a análise por cidade onde é vendida a Revista.

Uma característica da venda da Revista é que ela é feita apenas através de um contacto direto entre vendedor e comprador. Este processo feito desta forma tem vários motivos por trás. Por um lado, por enquanto ainda não é possível fazê-lo usando meios digitais, porque exigiria que cada vendedor tivesse algum equipamento eletrónico mais avançado, o que acarreta custos que não são razoáveis. Por outro lado, é um processo que exige que o vendedor estabeleça uma relação com o comprador, capacitando-o com competências de comunicação que são importantes no processo de ganho de maior independência financeira. Isto significa que sempre que alguém decide comprar a Revista está a ajudar diretamente alguém presente na sua comunidade mais próxima.

Achámos por isso que poderia ser interessante explorar esta ideia de pertença e contribuição a uma comunidade. E nesse sentido optámos por explorar os dados por cidade onde a revista é vendida. O perfil médio dos vendedores na cidade do Porto não é igual ao perfil médio dos vendedores na cidade de Lisboa. E ao fazer esta análise por comunidade pretendemos transmitir uma ideia o mais próxima possível da realidade que vão encontrar perto de si.

 

Desafios e lições

O nosso maior desafio esteve relacionado com a qualidade dos dados a que tivemos acesso, mas que é perfeitamente compreensível quando pensamos em todos os desafios que a CAIS enfrenta diariamente. Tivemos acesso a alguns dados não uniformes e, por vezes, não estruturados, o que levou a um acréscimo de complexidade da sua análise, ou mesmo a limitações no tipo de análises possíveis.

Houve também a questão de gestão de expectativas. Inicialmente tínhamos bastantes ideias de análises possíveis, em que podíamos explorar alguns modelos interessantes e desafiantes. Mas, na prática, o tipo de análises possíveis foram bastante simples devido à qualidade dos dados a que tivemos acesso. E nem sempre é fácil mantermo-nos motivados para a parte menos sexy da vida de um cientista de dados: o tratamento e limpeza de dados. 

Enquanto voluntários, outro grande desafio foi a gestão de tempo e garantir disponibilidade ao longo do decorrer do projeto. Houve várias alturas em que foi complicado reunir com todos os elementos da equipa ao mesmo tempo, o que dificultou a troca e concretização de ideias. O projeto acabou por ter uma duração maior do que inicialmente previsto e alguns elementos da equipa deixaram de ter disponibilidade a partir de certa altura. No fim, o trabalho passou a ser assegurado apenas por parte da equipa inicial. No entanto, com a ajuda da equipa da DSSG PT, conseguimos concluir um trabalho que nos orgulha e que reflete as intenções iniciais do projeto. 

Sabemos que nem sempre é fácil encontrar projetos sociais relevantes que façam sentido para a ciência de dados. O trabalho da  DSSG PT em ligar voluntários de diferentes domínios a associações beneficiárias na concretização de projetos que trazem um impacto real é extremamente importante e felizmente foi o caso neste projeto.